
A pesada atmosfera do mês de fevereiro tem a ver com dois presidentes: o do Brasil, que não se parece com Joe Biden, mas está cada vez mais parecido com José Sarney; e o dos EUA, que não se parece com nada que se tenha observado no passado.
Aos 95 anos, o ex-presidente José Sarney deu uma longa e reveladora entrevista para O Globo (em 09/03) da qual vale destacar duas pérolas, a primeira sobre seu governo (“governei num tempo em que a História se contorcia”); e a segunda, um recado: “é melhor sair muito bem do que já velho”.
O mês de fevereiro não foi tão curto, como de costume: o Carnaval começou no dia 28 (sexta-feira), dois dias depois de anúncio de outra pesquisa de opinião sobre a aprovação do governo, a segunda em sequência trazendo más notícias: confirma-se, e ainda de forma mais pronunciada, a tendência de perda de popularidade e aprovação.
O marqueteiro do presidente, Sidônio Palmeira, completou seu primeiro mês como ministro na chefia da SECOM (Secretaria de Comunicação) da Presidência da República. É pouco tempo para se aferir os efeitos da mudança de estratégia de comunicação do presidente, cujo começo “oficial” foi a entrevista presidencial de 30 de janeiro.
Ao longo do mês de fevereiro, o presidente falou muito de inflação, como se estivesse num “corpo a corpo” com quem sofre as consequências do problema. O presidente escolheu não tratar do fenômeno macroeconômico, mas das percepções populares do problema. Não foram falas técnicas, e tampouco houve qualquer recado ao Banco Central.
O repertório é vasto de imprecações contra os efeitos da inflação: está bem longe de ser a primeira vez que um presidente é aconselhado por marqueteiros a falar das dores que a inflação inflige às pessoas comuns. A inflação é uma velha conhecida, a experiência é longa e as aflições que causa são notórias.
Desta vez, muita atenção foi dada à inflação de alimentos, e ao preço dos ovos em particular. Assim aparece nas pesquisas de opinião. Há sempre um vilão, uma hortaliça rebelde, algum item da cesta que compõe o índice que experimentou uma variação enorme, vários desvios-padrão, distantes de 5% – o acumulado em 12 meses do IPCA até fevereiro de 2025.
A experiência já ensinou aos economistas que é sempre assim, e que o “outlier” não é o culpado pela inflação, ainda que tenha valor como distração, ou “valor jornalístico”. As autoridades se põem a desancar o chuchu, os ovos ou os atravessadores e oligopólios, com isso arrumando desculpas para o fracasso em frear a inflação e um jeito de parecer solidários com o sofrimento da população. As aparências importam para o processo político.
Tratando da inflação, em vários momentos, o presidente adotou um tom muito abertamente intervencionista e mesmo agressivo ao longo do mês de fevereiro. Felizmente, contudo, nada foi feito em matéria de controles de preços, tampouco prosperou a ideia de taxar ou restringir as exportações de alimentos.
A única medida relevante nesse contexto foi mais cosmética que real: uma rebaixa de tarifas de importação em setores selecionados, de pouca consequência, percebida apenas no noticiário do anúncio.
Afinal – não vamos perder de vista – o presidente está numa ofensiva de marketing, e não de combate à inflação. As coisas que os líderes políticos falam no âmbito do marketing eleitoral não precisam fazer sentido como enunciados técnicos de coisa alguma. Tampouco precisam se traduzir em medidas concretas.
É preciso não confundir os papéis: o presidente não busca colocar a inflação dentro da meta, apenas se solidarizar com as donas de casa que sofrem a carestia. As falas do presidente não se confundem com a comunicação do Banco Central. São papéis complementares e serão tanto mais efetivos, segundo me parece, quanto mais complementares e consistentes.
Não se pode perder de vista que o governo possui uma política muito clara e muito boa para tratar da inflação: chama-se “metas para a inflação” e está em vigor faz 25 anos. Foi definida no Decreto 3.088/1999, e recentemente “aperfeiçoada” pelo Decreto 12.079/2024, assinado pelo próprio Lula, com o declarado intuito de estabelecer direitos de propriedade sobre a ideia.
No âmbito dessa política, a meta para 2025, fixada pela Resolução 5.141 do Conselho Monetário Nacional (CMN) em 26/06/2024, é de 3%, e passa a ser aferida de forma contínua conforme estabelecido pela nem tão nova nem tão inovadora metodologia introduzida no Decreto 12.079/24.
No mês de fevereiro, não houve reunião do COPOM, a próxima será no dia 18 de março, com intervalo de 45 dias da reunião anterior. O evento de comunicação do Banco Central do Brasil (BCB) em fevereiro foi a divulgação da ata da reunião de janeiro no dia 4. Os eventos de comunicação do presidente ocorreram ao longo do mês, em várias ocasiões. Mas, sublinhe-se, os papéis não se misturam. O BCB não faz nada parecido com o marketing eleitoral e, por seu lado, o marqueteiro não se mete a fazer políticas de combate à inflação.
Hiperatividade
O mês de fevereiro foi animado na política. A hiperatividade do presidente parece também buscar protegê-lo de qualquer comparação com Joe Biden. Mesmo assim, cresceu a impressão de que Lula poderá não estar entre os candidatos nas eleições de 2026.
Caso concorra novamente, seria a sétima vez, sendo a primeira em 1989, com 37 anos de diferença para 2026, quando Lula terá 81 anos. Será o momento de seguir o conselho de Sarney?
Caso não concorra, abre-se um clarão pela esquerda e o assunto é difícil de se conversar no momento presente. Já pela direita, o clarão já está aberto, pois, em fevereiro, aumentou consideravelmente a probabilidade de a eleição de 2026 não contar com Jair Bolsonaro entre os candidatos. O ex-presidente está entre os denunciados pela PGR por tentativa de golpe, e as conversas sobre anistia aos envolvidos no 8 de janeiro murcharam. Parece muito difícil que a inelegibilidade de Bolsonaro seja revertida, de tal sorte que muitos nomes, em variadas combinações, têm sido ventilados.
Com esse nebuloso pano de fundo para 2026, quaisquer movimentos em Brasília adquirem muitos significados. As mudanças ministeriais, por exemplo, ensejaram muitas especulações. Em fevereiro, Lula demitiu a ministra da Saúde, Nísia Trindade, e a substituiu por Alexandre Padilha, que se viu substituído na secretaria de relações institucionais pela presidente do PT, a deputada federal Gleisi Hoffmann.
A solução mais fácil, a preferida dos aliados do governo pelo lado do “centrão”, era o deputado Isnaldo Bulhões (MDB-AL). Qual o significado da escolha de Gleisi Hoffmann? Qual o plano de Lula?
PIB
A economia permanece aquecida, nada mudou, por ora, de forma a alterar o quadro de crowding out: Loose fiscal, tight money. O anúncio do crescimento do PIB em 2024, feito no dia 7, entretanto, agradou a muitos públicos diferentes.
O PIB cresceu 3,4%, um número considerado bom, aferido no acumulado em quatro trimestres contra mesmo período do ano anterior, sem ajuste sazonal. É menos claro se, no anúncio, há indícios muito evidentes de uma desaceleração ao longo de 2024. O último trimestre de 2024 contra o último trimestre de 2023 teve crescimento de 3,6%, mas contra o trimestre anterior foi de 0,2%.
Dentro da observação sempre paradoxal dos profissionais do mundo financeiro, o indício de desaquecimento é boa notícia, pois vai aliviar a política monetária em algum momento. Os mercados derivativos de juros “fecharam”, ratificando a percepção de que o pico de juros pode acontecer antes do previsto, bem como pode ser mais curto o intervalo de juros muito altos. Não há boas notícias no front fiscal, mas a demanda por otimismo é sempre grande: o impulso fiscal ficou do mesmo tamanho, ou seja, não piorou. Talvez haja menos crowding out no futuro, a depender de novas medidas expansionistas que o governo anda preparando. Talvez.
Mas a grande novidade de fevereiro foi a hiperatividade de Donald Trump. Parece perturbadora a ideia de que, não apenas o Brasil, mas também os Estados Unidos, são tocados como um programa de auditório, ou como uma grande polêmica em redes sociais, com suas postagens e lacrações.
A polarização política continua extrema, e diante da torrente de iniciativas de Trump, tanto simpatizantes quanto detratores parecem incrédulos, ambos buscando fundamentos, seja para demonstrar que tudo isso faz sentido, ou que é puro improviso.
No plano fiscal, o destaque cabe ao DOGE (Department of Government Efficiency), um experimento inusitado de ajuste fiscal, ou de redução do “custo USA” (numa analogia ao nosso “custo Brasil”), conduzido por Elon Musk como um empreendimento transmitido em tempo real em rede social. Há também indicações de fenômeno parecido com o nosso contingenciamento, que alcançaria itens de despesa que a execução orçamentária brasileira jamais ousou tocar.
No plano da política externa, as excentricidades se acumulam: a Riviera de Gaza, a aquisição da Groelândia e do Canal do Panamá, a redenominação do Golfo do México (para Golfo da América). Mas pior que elas são movimentos como a aproximação com a Rússia, de que resultou a lamentável emboscada ao líder ucraniano Volodymyr Zelensky em pleno Salão Oval, os estranhamentos com a Europa e as tensões criadas pelas tarifas contra importações até mesmo do Canadá.
As tarifas têm causado muita preocupação entre economistas, uma categoria profissional que, em sua imensa maioria (mas não totalidade), aprendeu a desgostar desse instrumento. Os especialistas em comércio exterior estão perplexos, inclusive porque as alterações tarifárias já foram alteradas e suspensas várias vezes. Não parece haver plano algum.
Busca-se alguma lógica nessas ações com base em uma nova “visão” sobre o sistema monetário internacional, pela qual os Estados Unidos pretenderiam se afastar de diversas responsabilidades que o novo presidente acha que são muito onerosas para os americanos. Inclusive pertinentes ao que se convencionou designar como o “privilégio exorbitante” dos EUA.
A expressão é atribuída a Jacques Rueff, icônico economista liberal francês, e foi muito utilizada pelo ex-presidente da França, Valéry Giscard D’ Estaing (1926-2020). A expressão é de uma época em que os franceses estavam como hoje estão os chineses, incomodados com a indisciplina fiscal americana, e também com o fato de os americanos poderem pagar suas contas fora de seu país com sua própria moeda, que era e é aceita como moeda internacional de reserva em todo o planeta.
Desde o fim do padrão ouro que se discute o papel dos EUA como “economia central”, que se materializou com mais nitidez e institucionalidade no acordo de Bretton Woods em 1944. Nessa posição, os EUA não funcionaram tão bem quanto a Grã-Bretanha antes de 1914. Muita energia foi gasta em debater o acordo de 1944 e a organização monetária da economia internacional que emergia da Segunda Guerra Mundial.
O sistema de 1944 ruiu formalmente em 1971, quando o dólar perdeu sua conexão com o ouro, mas funcionou mais ou menos do mesmo jeito, numa espécie de padrão dólar, desde então. Fala-se em um Bretton Wood 2.0 com a emergência da China, e agora fala-se de Bretton Woods 3.0, mas são apenas especulações.
O isolacionismo americano não é fenômeno novo. Parece, todavia, estar se reciclando para o século XXI com Donald Trump.
É curioso que o presidente Trump veja inconvenientes na posição de economia central que financia seu déficit no balanço de pagamentos emitindo títulos da sua dívida pública denominados na sua moeda nacional.
Nos últimos anos, a China tem feito muitos esforços para que também a sua moeda seja aceita como moeda internacional de reserva, como demonstrado pelo empenho em participar da cesta de moedas que compõe o SDR (Special Drawing Rights), a moeda de conta do FMI.
Mas a China não conseguiu avançar muito nesse terreno: as dificuldades estão na escolha de moeda de faturamento para os exportadores (invoice currency), na jurisdição para transações internacionais e no ambiente regulatório e financeiro para alojar a atividade de pagamentos e recebimentos.
A posição de economia central, detentora de privilégio exorbitante, acaba trazendo despesas para os EUA que são parte do pacote, mesmo sendo sempre uma conversa difícil no contexto do orçamento fiscal americano. O dinheiro para atividades internacionais – em agências como a USAID, aumentos de capital nas organizações de Bretton Woods, assim como na sustentação da OTAN – competem com as utilizações locais.
Tudo considerado, estaria em gestação uma nova ordem monetária e comercial, que revertesse a globalização industrial e realocasse a economia americana numa posição lateral e discreta (e barata) na economia global? Haveria um plano para isso?
Ou estaríamos num momento de testes e improvisos, soltando balões de ensaio para talvez encontrar novos temas e oportunidades para governos que não têm muita ideia para onde ir?
Não há respostas, por enquanto. Estamos apenas em fevereiro, e as aparências costumam enganar.
Por: Gustavo Franco, sócio-fundador da Rio Bravo Investimentos e ex-presidente do Banco Central do Brasil.